"A boca fala do que o coração está cheio."

quinta-feira, 27 de março de 2008

Caixa de correio



E hoje eu tive vergonha de me ver no espelho.
Abri os olhos, pensei no que se havia passado na noite anterior.
Me arrependi tanto de ter dito aquelas coisas!
Senti raiva por ter feito a declaração perfeita de amor, para a pessoa errada ou no momento errado.
Disse coisas que não cabem mais ser ditas. Coisas que estão bem (mal) aqui só comigo.
A minha única esperança é que as minhas palavras se dispersem no vento e sejam ditas, misturadamente, por essa outra pessoa.
Verdadeiramente, não quero que fique com ela, mas já que escolheu assim, então segure-a pela mão e diga em sons, quase imperceptíveis, o quanta a ama.
Seja lá o que ela disser ou fizer depois disso, quero que lembre de mim.
Quero que me recorde como pessoa, não que as minhas palavras ecoem na sua cabeça.
Quero antes que sinta o calor que exala de mim, quase vitalizando-me ao seu lado.
E quando você estiver quente, eu já não estarei mais contigo. Então olhará para a pessoa que está com você e terás a resposta para a indecisão que julgas sentir.
Escrevo esta carta com remetente e destinatário, mas que nunca chegará.
Esta vai pra junto das tantas outras que escrevi.
Vai ficar na caixinha de música, onde há uma bailarina que gira pra um lado só e onde guardo meus pensamentos igualmente mal-fabricados.

quinta-feira, 20 de março de 2008

Só ensopada



Hoje olhei pro céu e vi aquelas gotas dançantes.
Ontem, saindo de casa, também as vi, na sua dança costumeira.
E elas tilintavam sobre os carros na avenida, depois deslizavam pelo vidro, obrigando-me a brincar daquilo que chamo de "corrida de gotas".

No banco de trás, desenho com a ponta do dedo, corações na janela. Em seguida escrevo meu nome e...somente meu nome.
Ali na janela não há mais espaço para nome algum.
Aqui no meu coração não há mais espaço.

(suspiro)

Acomodo-me melhor, no banco, mas vejo que falta pouco pra terminar o meu percurso. Logo, logo vou ter que sair dessa redoma confortável. E é quase sempre assim. Quando estou aconchegada n'algum corpo, vejo que tenho que ir embora.

Abandonando o 'ontem', volto a narrar o 'hoje' que daqui há algumas horas será também o 'ontem'.

Hoje-quase-ontem, sentei numa cadeira sob o céu.
E o céu é tão lindo no interior da cidade! Os céus são tão lindos nos interiores humanos!

Uma
g
o
t
a

Outras mais.

Ainda bem que estou embaixo de uma árvore. Ela me protege.
Mas...
Protege?
Do quê?
Me protege da água?
Vou me entregar à dança líquida.

Sinto frio, mas ele é menor do que aquela baixa temperatura em que está inserido o meu coração.
Mesmo estando ensopada, esse vento frio não me faz nem cócegas.

De repente sinto um arrepio e começo a sentir falta daqueles arrepios que ele me causava.
Acho que chegou o momento de entrar em casa e me secar.
Acho que chegou o momento de dissecar aquelas lembranças.

sábado, 8 de março de 2008

Uma nova forma de morrer




Ana molhava os pés no mar e banhava a alma de sensações.
Há tempos ela já havia o deixado.
Há tempos ela tentava ser mais alegre.
Hoje ela lembrava daquele último diálogo.
"Faz dois meses que me transformei numa pessoa que já foi feliz."
E as lágrimas chegavam na pálpebra inferior, mas Ana não permitia que elas invadissem o seu território facial, tão levemente maquiado.
E o coração doia.
E o orgulho estava ferido.
E o pé doia, porque uma búzio-presente do mar- o havia ferido.
Ana sentou ali mesmo, na beirada da praia, molhando seu vestido sem cor e viu o sangue escorrer pelo pé. Ela chegou a conclusão de que a dor sempre vencia. Não podendo esvair-se pelos olhos, o corpo encontrou outra maneira para liberar a sua sensação de desprazer.
Ah...!
As palavras dele: "minha pequena".
Ana sentiu-se minúscula por estar pensando aquilo. Tão pequena, que desejou que ele a abraçasse e a protegesse.
"Não. Basta!"
Decidiu dar [a]deus a sua vida.
Foi caminhando pela praia com um só pensamento na cabeça.

Ao chegar em casa ela pôs aquele vestido velho, que só usava em ocasiões especiais. Aquele vestido vermelho e em excelente estado. Penteou-se muito bem e colocou a corrente no pescoço.
Pronto!
Estava pronta pra abandonar a vida.
Naquele exato momento o interfone tocou e ela viu o carro parado lá embaixo.
Olhou-se mais uma vez no espelho e saiu com aquele homem que há tanto tempo a convidava pra jantar.
E ela finalmente conseguiu morrer.
Despediu-se da vida, luxuosamente.
Ana foi. Com a corrente no pescoço.
Morreu sufocada com a jóia de família.