"A boca fala do que o coração está cheio."

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Do nascimento de "Lokura"




Frio.
Faz um estranho frio neste crepúsculo no verão.
Eu, aconchegada nos meus 39 anos, estou sentada na varanda de um casebre alugado, relembrando cenas de um passado ainda tão quente em mim.

-Amor, vem deitar aqui comigo.
-Estou atrasado, hoje não dá, querida.
-Você nunca passa uma noite inteira comigo. Nunca pude contemplar o seu rosto nas frestas da cortina, sob a luz do amanhecer.
-Pequena, você sabe que eu não posso. Pelo menos por enquanto. Espera só mais alguns meses.
-Você não pode ou não quer?
-Por favor, não me venha com essa. Não tenho tempo pra isso agora.
-"Agora"? Tempo pra nós dois, você nunca tem. Mas tudo, bem, não vamos falar disso. Até porque, você já está vestido, vai abrir a porta, ir pra sua real vidinha e me deixar com lágrimas nos olhos, falando sozinha.
-Você acaba comigo quando fala assim.
-E você acaba comigo quando mostra a realidade.
-Olha, fica com esse cheque, compra um vestido novo, porque vou te levar pra jantar.
-Amanhã?
-Não. Amanhã não. Na semana que vem.
-E quando nos vemos?
-Na semana que vem, oras. Quando eu vier te buscar pro jantar.
-Os nossos encontros têm sido cada vez mais esporádicos.
-Você sabe o motivo. Eu estava me arriscando muito e eu não quero magoar ninguém.
-Ok!
-Te amo muito, minha pequena. Fica bem, tá?
-Vou tentar. Vou tentar.

Eu enganava a mim mesma ou enganava ele?
Ele sempre teve certeza que eu sofria desesperadamente com a sua ausência. Coitado. Nunca soube que isto só aconteceu tempos depois. Muito depois.

-Por que você quis me encontrar aqui?
-Eu sei que você gosta de Frida Kahlo.
-E você acha que me trazer neste vernissage foi um bom presente?
-Eu pensei que você fosse gostar. Qual o problema?
- O problema? Ah, não é nada. Só o fato de que tenho que ficar um pouco afastada de você para que ninguém perceba que somos íntimos demais.
-O que você queria? Que eu te abrçasse, saísse pelo museu e parasse em frente a "Raízes" que é a última obra desta sessão, te beijando na frente de todo mundo, inclusive da minha secretária?
-É isso. Você conseguiu adivinhar. Eu quero você comigo. Quero você sempre. Não uma vez por semana e em encontros disfarçados.
-Fale mais baixo ou alguém pode escutar.
-Não se preocupe. Se alguém ouviu alguma coisa e estiver vindo pra cá, vai pensar que você está falando sozinho, porque eu já vou embora.
-Não. Não vá. Vamos pro carro.
-Nossa. Depois de se preocupar tanto com os centímetros de distância, agora está querendo que eu vá pro seu carro com você?
-Por favor, Ana. Vamos logo, sem mais falações daqui até lá.

-Pronto. Estamos aqui como você quis.
-Eu naõ estava aguenta nossa distância. Admito ter sido uma péssima idéia. Desculpa.
-Essa situação está ficando insustentável.
-Eu precisava sentir sua pele. Tirar seu batom...
-Pára, pára, Miguel. Precisamos conversar.
-Ana, vamos aproveitar.
-Nós temos que aproveitar, porque não sabemos quando vamos nos encontar novamente, não é?
-Não é isso. A gente tem que aproveitar o momento, a vida, o amor que a gente tem.
-Eu não aguento mais.
-Você não aguenta mais me amar?
-Talvez. Eu sei que é lindo acreditar que o amor é maior que tudo, mas faz tempo que não leio contos de fadas. A nossa situação fez do meu amor um poço. Um poço daqueles bem fundos, onde a gente não sabe se lá embaixo é chão firme ou água.
-Espera... não vá!
-É só isso que você tem a dizer?

Não sei como fui me envolver com um homem tão babaca como ele. Nem atitude pra me dar um último beijo, ele teve. Ou pelo menos, naquele dia, eu pensei que pudesse ter sido o último beijo.

-Você trocou a fechadura?
-É, troquei, porque a outra quebrou.
-Achei que tivesse trocado para que eu não pudesse entrar.
-Não.
-Por que você não estava atendendo minhas ligações?
-Eu atendi. Tanto que estou estou te esperando aqui faz meia hora.
-Desculpe o atraso, é que...
-Satisfações são desnecessárias.
-Não faz isso comigo. Essa sua indiferença é terrível. Por que não continuamos juntos? Eu te amo muito, Ana e smpre tive certeza que você não duvidava disso.
-Como podemos ficar juntos? Uma vz por semana? Escondido de todo mundo? Eu não quero essa vida pra mim.
-Eu pedi pra você ter paciência. Já dei entrada nos papéis da separação. Hoje é aniversário do Pedro e ele quer que eu leve ele e a mãe pra fazenda do avô. Se você quiser, quando eu voltar, passo pra te pegar e a gente vai pr'uma casinha que aluguei em Caeté.
-Você está falando a verdade?
-Eu nunca menti pra você. Mas agora preciso ir.
-Eu te amo, Miguel. Durante todos esses anos nunca tive muita certeza disso. Mas no momento, as palavras me fogem e tudo parece pequeno demais para caber minhas sensações.

O melhor beijo da minha vida. A lembrança que jamais esquecerei. A minha maior dor.
Naquele dia, a felicidade era grande, mas o instinto de desconfiança persistia em fazer parte de mim. Então decidi seguir o Miguel. Vi o carro dele parado na porta de casa e minutos depois a mulher, o filho e ele, entravam no carro com as malas. Isso deveria ser suficiente para comprovar que o Miguel não mentira para mim. Mas não foi. Decidi seguir o carro dele e ver onde iam. Depois de duas horas de viagem, vi o carro da família entrar na fazenda Albuquerque. Agora eu estava satisfeita, mas havia um problema: o Miguel não poderia saber que o segui até ali, porque seria falta de confiança da minha parte. Resolvi ligar pra ele e pedir um requeijão fresco, com goiabada, que era vendido numa loja na beira da estrada. Assim eu ganharia tempo pra passar na frente dele.
E o meu plano havia dado certo, porque cheguei em casa a tempo de colocar o carro na garagem e assistir um pouco de televisão. Foi então que senti um aperto no peito. A notícia no jornal anunciava que havia ocorrido um assaltado numa loja em beira de estrada; a mesma loja em que pedi pro Miguel passar. O resultado do assaltado era a morte de duas pessoas, dentre essas, estava Miguel.
Às vezes, me martirizo com as escolhas erradas. Depois de tantos anos, descobri que de fato o amava. De vez em quando, quando a saudade aperta, posso ver o Miguel nos olhos e no sorriso do nosso filho.
Agora, estou confortavelmente feliz nesse fim de tarde vendo meu filho e meu marido chegarem da pescaria no lago que fica aos fundos da casinha que ele alugou em Caeté.
Nota da autora: título e imagem fazem parte do Diário de Frida Kahlo. Como se pode ver na imagem, Frida conta uma estória sobre "Ojo Único" e a belíssima "Neferísis, que se casam num mês calorento e vital. Desse casamento nasce um filho de rosto estranho, chamado "Neferúnico", que mais tarde torna-se fundador da cidade comumente chamada "Lokura".